
Não há nada que me fascine mais. Como é que as montanhas, matas ou mares influem tanto, e determinam a cadência e a sonoridade das palavras? É um absurdo. Existem livros sobre tudo; não tem (ou não conheço) um sobre o falar ingênuo deste povo doce. Escritores, ô de casa, cadê vocês? Escrevam sobre isto, se já escreveram me mandem, que espero ansioso. Um simples" mas" é uma coisa no Rio Grande do Sul. É tudo menos um "mas" nordestino, por exemplo.
O sotaque das mineiras deveria ser ilegal, imoral ou engordar.
Porque, se tudo que é bom tem um desses horríveis efeitos colaterais, como é que o falar, sensual e lindo (das mineiras) ficou de fora? Porque, Deus, que sotaque! Mineira devia nascer com tarja preta avisando: ouvi-la faz mal à saúde. Se uma mineira, falando mansinho, me pedir para assinar um contrato doando tudo que tenho, sou capaz de perguntar: só isso? Assino achando que ela me faz um favor.
Eu sou suspeitíssimo. Confesso: esse sotaque me desarma. Certa vez quase propus casamento a uma menina que me ligou por engano, só pelo sotaque. Mas, se o sotaque desarma, as expressões são um capítulo à parte. Não vou exagerar, dizendo que a gente não se entende... Mas que é algo delicioso descobrir, aos poucos, as expressões daqui, ah isso é... Os mineiros têm um ódio mortal das palavras completas. Preferem, sabe-se lá por que, abandoná-las no meio do caminho (não dizem: pode parar, onde estou?; dizem: "pó parar", "ôncôtô?"). Parece que as palavras, para os mineiros, são como aqueles chatos que pedem carona. Quando você percebe a roubada, prefere deixá-los no caminho. Os não-mineiros, ignorantes nas coisas de Minas, supõem, precipitada e levianamente, que os mineiros vivem - lingüisticamente falando - apenas de uais, trens e sôs. Digo-lhes que não. Mineiro não fala que o sujeito é competente em tal ou qual atividade. Fala que ele é bom de serviço. Pouco importa que seja um juiz, um jogador de futebol ou um ator de filme pornô. Se der no couro - metaforicamente falando, claro - ele é bom de serviço. Faz sentido...
Mineiras não usam o famosíssimo "tudo bem". Sempre que duas mineiras se encontram, uma delas há de perguntar pra outra: "cê tá boa?"
Para mim, isso é pleonasmo. Perguntar para uma mineira se ela tá boa, é como perguntar a um peixe se ele sabe nadar. Desnecessário. Há outras. Vamos supor que você esteja tendo um caso com uma mulher casada. Um amigo seu, se for mineiro, vai chegar e dizer:
- Mexe q'isso não, sô! (leia-se: sai dessa, é fria, etc).
O verbo "mexer", para os mineiros, tem os mais amplos significados. Quer dizer, por exemplo, trabalhar. Se lhe perguntarem com o que você mexe, não fique ofendido. Querem saber o seu ofício.
Os mineiros também não gostam do verbo conseguir. Aqui ninguém consegue nada. Você não dá conta. Sôcê (se você) acha que não vai chegar a tempo, você liga e diz:
- Aqui..., não vou dar conta de chegar na hora, não, sô.
- Aqui..., não vou dar conta de chegar na hora, não, sô.
Esse "aqui" é outro que só tem aqui. É antecedente obrigatório, sob pena de punição pública, de qualquer frase. É mais usada, no entanto, quando você quer falar e não estão lhe dando muita atenção: é uma forma de dizer, olá, me escutem, por favor. É a última instância antes de se jogar um pão de queijo na cabeça do interlocutor.
Mineiras não dizem "apaixonado por". Dizem, sabe-se lá por que, "apaixonado com". Soa engraçado aos ouvidos forasteiros. Ouve-se a toda hora:
"Ah, eu apaixonei com ele...". Ou: "sou doida com ele"
(ele, no caso, pode ser você, um carro, um cachorro). Elas vivem apaixonadas com alguma coisa.
"Ah, eu apaixonei com ele...". Ou: "sou doida com ele"
(ele, no caso, pode ser você, um carro, um cachorro). Elas vivem apaixonadas com alguma coisa.
Que os mineiros não acabam as palavras, todo mundo sabe. É um tal de bonitim, fechadim, e por aí vai. Já me acostumei a ouvir: "E aí, vão?". Traduzo: "E aí, vamos?". Não caia na besteira de esperar um "vamos" completo de uma mineira. Não ouvirá nunca.
Na verdade, o mineiro é o baiano lingüístico. A preguiça chegou aqui e armou rede. O mineiro não pronuncia uma palavra completa nem com uma arma apontada para a cabeça. Eu preciso avisar à língua portuguesa que gosto muito dela, mas prefiro, com todo respeito, a mineira. Nada pessoal. Aqui certas regras não entram. São barradas pelas montanhas. Por exemplo: em Minas, se você quiser falar que precisa ir a um lugar, vai dizer: - Eu preciso de ir. Onde os mineiros arrumaram esse "de", aí no meio, é uma boa pergunta. Só não me perguntem. Mas que ele existe, existe. Asseguro que sim, com escritura lavrada em cartório. Deixa eu repetir, porque é importante. Aqui em Minas ninguém precisa ir a lugar nenhum. Entendam... Você não precisa ir, você "precisa de ir". Você não precisa viajar, você "precisa de viajar". Se você chamar sua filha para acompanhá-la ao supermercado, ela reclamará:
- Ah, mãe, eu preciso de ir?
- Ah, mãe, eu preciso de ir?
No supermercado, o mineiro não faz muitas compras, ele compra um tanto de coisa. Ou, em mineirês culto, "um tan'di coisa".
O supermercado não estará lotado, ele terá um tan'di de gente. Se a fila do caixa não anda, é porque está garrando lá na frente. Entendeu? Deus, tenho que explicar tudo! Não vou ficar procurando sinônimo, que diabo. E não digo mais nada, leitor, você está agarrando meu texto. Agarrar é agarrar, ora! Se, saindo do supermercado, a mineirinha vir um mendigo e ficar com pena, suspirará:
- Ai, gente, que dó!...
- Ai, gente, que dó!...
É provável que a essa altura o leitor já esteja apaixonado pelas mineiras. Eu aviso que vá se apaixonar na China, que lá está sobrando gente. E não vem caçar confusão pro meu lado. Porque, devo dizer, mineiro não arruma briga, mineiro "caça confusão". Se você quiser dizer que tal sujeito é arruaceiro, é melhor falar, para se fazer entendido, que ele "vive caçando confusão". Para uma mineira falar do meu desempenho sexual, ou dizer que algo é muitíssimo bom (acho que dá na mesma), ela, se for jovem, vai gritar:
"Ô..., é sem noção".
"Ô..., é sem noção".
Entendeu, leitora? É sem noção! Você não tem, leitora, idéia do tanto de bom que é. Só não esqueça, por favor, o "Ô" no começo, porque sem ele não dá para dar noção do tanto que algo é sem noção, entendeu?
Ouço a leitora chiar: - Capaz... Vocês já ouviram esse "capaz"? É lindo. Quer dizer o quê? Sei lá, quer dizer "tá fácil que eu faça isso", com algumas toneladas de ironia. Gente, ando um péssimo tradutor. Se você propõe a sua namorada um sexo a três (com as amigas dela, claro), provavelmente ouvirá um "capaz..." como resposta. Se, em vingança contra a recusa, você ameaçar casar com a Gisele Bundchen, ela dirá: "ô dó dôcê". Entendeu agora? Não? Deixa para lá. É parecido com o "nem...". Já ouviu o "nem..."? Completo ele fica: - Ah, nem... O que significa? Significa, amigo leitor, que a mineira que o pronunciou não fará o que você propôs de jeito nenhum. Mas de jeito nenhum. Você diz: - Meu amor, cê anima de comer um tropeiro no Mineirão?. - Nem... Ainda não entendeu? Uai, nem é nem. Leitor, você é meio burrinho ou é impressão?
A propósito, um mineiro não pergunta: "você não vai?". A pergunta, mineiramente falando, seria: "cê não anima de ir não"? Tão simples... O resto do Brasil complica tudo. É, ué, cês dão umas volta pra falar os trem... Certa vez pedi um exemplo e a interlocutora pensou alto: - Você quer que eu "dou" um exemplo... Eu sei, eu sei, a gramática não tolera esses abusos mineiros de conjugação. Mas que são uma gracinha, ah isso lá são. Falando em "ei...". As mineiras falam assim, usando, curiosamente, o "ei" no lugar do "oi". Você liga, e elas atendem lindamente: "eiiii!!!", com muitos pontos de exclamação, a depender da saudade... Tem tantos outros... O plural, então, é um problema. Um lindo problema, mas um problema. Sou, não nego, suspeito. Minha inclinação é para perdoar, com louvor, os deslizes vocabulares das mineiras. Aliás, deslizes nada. Só porque aqui a língua é outra, não quer dizer que a oficial esteja com a razão. Se você, em conversa, falar: - Ah, fui lá comprar umas coisas... - Que' s coisa? - ela retrucará. Acreditam? O plural dá um pulo. Sai das coisas e vai para o que. Ouvi de uma menina culta um "pelas metade", no lugar de "pela metade". E se você acusar injustamente uma mineira, ela, chorosa, confidenciará: - Ele pôs a culpa "ni mim". A conjugação dos verbos tem lá seus mistérios, em Minas... Ontem, uma senhora docemente me consolou: "preocupa não, bobo!". E meus ouvidos, já acostumados às ingênuas conjugações mineiras. nem se espantam. Talvez se espantassem se ouvissem um: "não se preocupe", ou algo assim. A fórmula mineira é sintética. e diz tudo. Até o tchau. em Minas. é personalizado. Ninguém diz tchau pura e simplesmente. Aqui se diz: "tchau pro cê", "tchau pro cês". É útil deixar claro o destinatário do tchau. O tchau, minha fia, é prôcê, não é pra outra entendeu? Deve haver, por certo, outras expressões... A minha memória (que não ajuda muito) trouxe essas por enquanto. Estou, claro, aberto a sugestões. Como é uma pesquisa empírica, umas voluntárias ajudariam... Exigência: ser mineira!
Extraído do livro As coisas simpáticas da vida, de Felipe Peixoto Braga Neto, Landy Editora, São Paulo (SP) - 2005, pág. 82
Felipe Peixoto Braga Netto (1973), afirma que não é jornalista, não é publicitário, nunca publicou crônicas ou contos, não é, enfim, literariamente falando, muita coisa, segundo suas próprias palavras.
Alagoano, mora em Belo Horizonte e ama Minas Gerais.
Ele diz que nunca publicou nada, mas a crônica abaixo foi extraída do livro dele, 'As coisas simpáticas da vida', publicada pela "Landy Editora", São Paulo (SP) - 2005, pág. 82.
Felipe Peixoto Braga Netto (1973), afirma que não é jornalista, não é publicitário, nunca publicou crônicas ou contos, não é, enfim, literariamente falando, muita coisa, segundo suas próprias palavras.
Alagoano, mora em Belo Horizonte e ama Minas Gerais.
Ele diz que nunca publicou nada, mas a crônica abaixo foi extraída do livro dele, 'As coisas simpáticas da vida', publicada pela "Landy Editora", São Paulo (SP) - 2005, pág. 82.
Nenhum comentário:
Postar um comentário